Tragédia Anunciada

por agosto/2016Crônicas0 Comentários

Hoje eu vou contar para vocês uma história em ritmo de cinema, seria um “curta”.

Cena 1

Sala comercial em um prédio da rua Dr. Feliciano Sodré, São Gonçalo, Rio de Janeiro.

Nosso herói, um homem alquebrado pelo tempo, cheio de rugas no rosto, cabelo branco, acho até que ele lava a cabeça com aquele sabão que apregoa na televisão “branco mais branco”.

Ele chega da rua com ar de cansado.

Na sala, três moças e um senhor bem arrumado. Ali funcionava uma Repartição Pública Estadual.

Diálogos:

DR. JAILRO: O que houve? Você demorou muito no Banco.
ZÉ DO BLAZIU: Doutor, eu fui ao Banerj. Aquilo é um inferno, fila para tudo quanto é lado, os funcionários parecem que trabalham com raiva.
DR. JAIRO: Dizem que com a privatização vai melhorar.
MARTA (UMA LOURINHA): Não acredito, aquilo não tem jeito.
ANA (MORENAÇO): Ir ao Banerj é pior que pagar penitência.
ZÉ DO BLAZIU: Só tendo aquilo “amarelo paciência”.

Cena 2

ZÉ (na copa, que é separada da sala por uma divisória). Ele prepara um café, arruma uma bandeja com copos com água e as xícaras. Coloca também um vidro com adoçante para aqueles que fingem que fazem dieta, pois quando saem pelas “quebradas da vida” tomam refrigerantes, cervejas e comem doces à beça, salgadinhos com muita gordura e “outras milongas mais”.

Ouve-se o barulho da porta da sala se abrir, bruscamente. Ele aguça os ouvidos.

Cena 3

Na sala, três homens (assaltantes) com “cara de poucos amigos”. Mais zangados que funcionários estaduais demitidos injustamente pelo atual governador.

Mais irados que torcedor vascaíno depois dos 6 x 2 para o Cruzeiro em pleno Estádio de São Januário.

Relógio

Foto: WayTru

Diálogos:

NANDO (QUE PARECIA SER O CHEFE): Isso é um assalto!
DR. JAIRO: Nós não temos dinheiro!
NANDO: Como não tem dinheiro? Este não é um escritório de um político de Brasília? E político tá sempre por cima da carne seca.
DR JAIRO: Não amigo, aqui é uma Repartição Pública Estadual.
NANDO: Já que é assim, nós não vamos perder a visita, queremos os penduricalhos das mulheres e os “redondos” dos homens.
CELO (QUE PARECIA SER O SUBCHEFE): Olha, chefe, a bandeja que estava arrumadinha para a gente lá dentro da copa.
NANDO: E não tinha ninguém lá dentro?
CELO: Não, nem uma viva alma.

As meninas olham para o chefe, como a perguntar: Cadê o Zé?

NANDO: Você olhou no banheiro?
CELO: Não tinha ninguém para fazer maldade, eu estou sozinho.

Cena 4

Pendurado no parapeito da janela, solto no ar, lá estava nosso herói Zé do Blaziu. Por que ele é nosso herói? Vocês acham que é fácil viver com salário de contínuo de uma repartição pública e ainda por cima sempre na expectativa de ser demitido, além de ser taxado de causa da inoperância da máquina administrativa dos governos?

Pior só mesmo professor, que como castigo pela escolha da sua profissão tem um salário tão aviltante, que chega a ser uma esmola. Aliás, pedindo esmola se ganha mais que um professor.

Na rua começa a juntar gente olhando para o nosso herói pendurado:

– Olha! Ele vai pular.
– Ele deve ser um aposentado desesperado, coitado!
– Vai ver que o seu dinheiro estava retido em algum banco que faliu.
– Ele deve ter perdido o emprego.

A turba enraivecida com todas as mazelas de suas vidas, “coloca para fora”, um coro uníssono (no inicio fraco, mas pouco a pouco vai aumentando):

– Pula! Pula! Pula!

Pendurado no parapeito da janela, nosso herói repassa na memória a sua vida: morador do bairro do Zumbi, um cidadão anônimo dentre os milhões de brasileiros esquecidos pelos governantes, uma pessoa sem direito a nada, só com obrigações.

– Pula! Pula! Pula!

O coro aumentava.

Por fim ele pensa: eu, na minha idade, não vou dar o meu “redondo” para ninguém. O que os meus amigos iriam achar da minha pessoa.

Ele já não escuta mais nada, nem a voz do povo, nem a voz da sua consciência.

Nosso herói abre os braços, dá um sorriso e voa.

Cena 5

Um a um, os “assassinos anônimos” começam a se afastar da cena do crime.

No chão um corpo inerte, no pulso um “redondo” de camelô.

Câmera:

Focaliza o corpo do nosso herói, dá um close do relógio no pulso marcando 18:00.

Congela a imagem.

The End.

DR. JAIRO (JÁ IRRITADO BATE NA PORTA DO BANHEIRO): Abre essa porta, que eu quero fazer xixi.

A porta se abre e eis que surge o Zé do Blaziu, todo molhado.

ZÉ DO BLAZIU: Que pesadelo horrível.

Agora sim. FIM.

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