Dia de Finados

por novembro/2008Crônicas0 Comentários

Dia 2 de novembro é a data consagrada a se reverenciar os entes queridos que se foram para um mundo melhor, isto é, se fizeram por merecer.

No alto do morro pertinho do céu, em um barraco humilde, morava o meu amigo Joaquim Murieta, ex-funcionário público. Ele era contínuo de uma empresa do governo quando esta resolveu fazer uma contenção de despesas para “inglês ver”. As medidas adotadas sempre são as mesmas: corta-se o cafezinho, demitem-se os contínuos e os serventes. É o famoso “conto do vigário”: as demissões incentivadas.

Em contrapartida, admite-se pessoas em cargos de confiança, para melhorar o “intelecto” das empresas, gente com “alto QI”.

Meu amigo acreditou na conversa mole, que dizia que a vida do pobre tinha melhorado. Que o seu poder de compra havia aumentado. Que inocência!

Sem pensar duas vezes, ele comprou uma televisão colorida. Já dava para ver as cores do “manto sagrado” do seu Flamengo. Pena que o seu querido Mengão vivia perdendo naquela época. Sua esposa “se dopava” com dose cavalar de novelas. Seus filhos queriam, a todo custo, saber o que tinham que fazer para serem iguais à Xuxa, quando crescessem.

Joaquim Murieta estava em uma “sinuca de bico”. O dinheiro da indenização não deu nem para cobrir todas as prestações da compra da televisão. Faltavam a última, que já estava atrasada há 3 meses. A loja ameaçava retomar o tesouro da família, a coisa mais importante daquele casebre.

Podia faltar tudo: escola, feijão, água, pois eles se alimentavam da ilusão fornecida diariamente pela televisão. Então, Joaquim Murieta, resolveu ir para o cemitério no dia de finados, tentar “salvar a pátria” ou melhor a televisão, pintando túmulos com cal.

Do outro lado do bairro, naquela cobertura, à beira mar, morava dona Josefina, viúva há 10 anos de um político.

Todos os domingos ela se arrumava e ficava em frente ao aparelho de TV, para assistir ao programa Namoro na TV. Ela torcia, rezava, vibrava. Às vezes se via participando do programa. Porém vinha a imagem do marido. Ela então “caia na real”. Ficava vermelha, suava, se sentia pecadora.

Sua melhor amiga, Marietinha, cansava de convidá-la para sair, ir aos bailes da vida. Viajar, passear. Conhecer gente. Sair da toca. Nada disso a demovia, ela parecia que tinha morrido junto com o seu marido.

Cemitério

Foto: Fernando Dall’Acqua

O relógio marcava 17 horas, faltava somente uma hora para fechar as portas do cemitério.

Aliás, eu li em um cemitério uma frase que retrata uma grande verdade: “É aqui que os homens se igualam”.

Joaquim Murieta, cansado de tanto trabalhar, cheio de fome, sentou-se na beira de uma cova rasa, que estava aberta. Pegou aquela garrafa de cachaça, que ele tinha achado perdida alhures e deixou escorregar pela garganta o liquido incolor. Afinal, ele tinha conseguido o dinheiro da prestação.

Sol forte, calor na cabeça, estômago vazio, não deu outra: ficou tudo escuro. Ele e a lata de cal caíram desmaiados dentro da sepultura.

Dona Josefina, deixou para chegar no cemitério bem tarde, para não encontrá-lo cheio.

Ela parou ao lado da lápide do marido, depositou as flores, e começou a rezar pela alma do finado.

Sem que ela percebesse, veio ao seu pensamento a imagem de um homem lindo, fechou os olhos e sonhou.

Joaquim Murieta, ainda deitado, meio grogue, acordou e começou a declamar uma poesia que começava a brotar inadvertidamente, em sua “cachola”:

“Quero a alegria do carnaval
Nos braços da mulher amada.
Venha minha doce fada.”

O relógio no pulso de dona Josefina marcava 5 minutos para as 18 horas. Ao ouvir as palavras soltas no ar, ela se ajoelhou e começou à agradecer ao Santo Antonio, que finalmente resolvera atender aos seus pedidos. Ela já se via entrando nos motéis da vida. Caminhou logo em direção ao local de onde saía aquela voz.

Joaquim Murieta levantou-se da cova, todo branco de cal, segurando a broxa. Parecia a Estátua da Liberdade. Dona Josefina, toda de preto, véu negro na cabeça, bolsa preta, luvas idem. Eles se entreolharam, branco e preto no Cemitério São João Batista.

miséria caiu para um lado.

solidão caiu para o outro.

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